Ai, que saudade daquele tempo em que a gente morria de amor e não de atropelamento... Ai, que saudade do contento de um bolo fumegante de fubá, simplório e realista, que agradava qualquer paladar! Aquilo sim, calava os subúrbios escuros da mente da criança chorosa que acabara de tomar um sopapo estúpido do velho que fedia a álcool e a suor.
Tomávamos muito café desde pequenos, aquele cheiro vinha com o brinde de um beijo de avó, que parece pedir perdão ao neto pelo pecado de seu filho triste e bruto.
Os cães cegos da rua Álvares de Azevedo cheiravam o chão à procura de restos de lixo com os ouvidos atentos aos automóveis velhos que por vezes passavam rente às suas silhuetas magras. Os vizinhos escaldavam os gatos, belas criaturas que passeavam nos telhados, que morriam nus, sem pêlo, com as retinas opacas e as bocas abertas como que em sede.
Odiava quando minha mãe metia a tesoura no meu cabelo, logo um cabelo tão delicado, castanho e fino que escorria na face, caía pelo chão, podada, a única e suave determinante da identidade feminina da criança. Talvez por isso eu gostasse tanto daquele vestidinho vermelho (e único) e da sapatilhas gastas de correr.
Nada era melhor que estojo novo de canetinhas coloridas e o cheiro do papel recém saído do Xerox para a mesa da sala de aula. Quem tinha fome, não reclamava da canjica da Dona Tereza, cozinheira da cantina, mãe de muitas bocas, e de outras suas, noturnas, que mal alimentava em sua casa. Minha mãe era professora, e eu era igual a todas as crianças.
Cachorro, galinha, marreco, vaca e cavalo. Férias nos cafundós do pobre Judas, móveis coloniais com couro gasto, à noite telas de mosquiteiros e som de radinho à pilha, eu escovava os dentes com a escova da minha prima que sabia tudo sobre os bichos e as proezas da natureza com seus olhos profundos acostumados ao silêncio bucólico.
Presente muito caro de tia era a medalhinha finíssima de Nossa Senhora folheada a ouro. Os três reis magos entrando com violas adornadas com fitas coloridas e flores na casa da avó materna religiosa, prendas, orações e comida farta, ninguém conseguiu explicar até hoje aquele cheiro forte de rosas quando a imagem da Nossa Senhora da rosa Mística foi levada ao centro da sala da matriarca, viúva quando ainda nova, com a prole de onze filhos. Dizia ser a sua santa protetora.
Retalhos macios unidos num cozer perfeito de coloridos geométricos, colcha que dava sono pelo seu cheiro de limpeza, já tantas vezes lavada, e pelo cheiro familiar próprio das coisas que se compartilham numa casa de família grande. Todos os meus primos eram meus irmão, e eram tantos os filhos, que todos os adultos eram pais e mães de todos nós e, como apanhava-se menos dos pais dos outros do que dos nossos, aprontávamos em dobro.
(continua...)
Tomávamos muito café desde pequenos, aquele cheiro vinha com o brinde de um beijo de avó, que parece pedir perdão ao neto pelo pecado de seu filho triste e bruto.
Os cães cegos da rua Álvares de Azevedo cheiravam o chão à procura de restos de lixo com os ouvidos atentos aos automóveis velhos que por vezes passavam rente às suas silhuetas magras. Os vizinhos escaldavam os gatos, belas criaturas que passeavam nos telhados, que morriam nus, sem pêlo, com as retinas opacas e as bocas abertas como que em sede.
Odiava quando minha mãe metia a tesoura no meu cabelo, logo um cabelo tão delicado, castanho e fino que escorria na face, caía pelo chão, podada, a única e suave determinante da identidade feminina da criança. Talvez por isso eu gostasse tanto daquele vestidinho vermelho (e único) e da sapatilhas gastas de correr.
Nada era melhor que estojo novo de canetinhas coloridas e o cheiro do papel recém saído do Xerox para a mesa da sala de aula. Quem tinha fome, não reclamava da canjica da Dona Tereza, cozinheira da cantina, mãe de muitas bocas, e de outras suas, noturnas, que mal alimentava em sua casa. Minha mãe era professora, e eu era igual a todas as crianças.
Cachorro, galinha, marreco, vaca e cavalo. Férias nos cafundós do pobre Judas, móveis coloniais com couro gasto, à noite telas de mosquiteiros e som de radinho à pilha, eu escovava os dentes com a escova da minha prima que sabia tudo sobre os bichos e as proezas da natureza com seus olhos profundos acostumados ao silêncio bucólico.
Presente muito caro de tia era a medalhinha finíssima de Nossa Senhora folheada a ouro. Os três reis magos entrando com violas adornadas com fitas coloridas e flores na casa da avó materna religiosa, prendas, orações e comida farta, ninguém conseguiu explicar até hoje aquele cheiro forte de rosas quando a imagem da Nossa Senhora da rosa Mística foi levada ao centro da sala da matriarca, viúva quando ainda nova, com a prole de onze filhos. Dizia ser a sua santa protetora.
Retalhos macios unidos num cozer perfeito de coloridos geométricos, colcha que dava sono pelo seu cheiro de limpeza, já tantas vezes lavada, e pelo cheiro familiar próprio das coisas que se compartilham numa casa de família grande. Todos os meus primos eram meus irmão, e eram tantos os filhos, que todos os adultos eram pais e mães de todos nós e, como apanhava-se menos dos pais dos outros do que dos nossos, aprontávamos em dobro.
(continua...)